Quando a gente tá bem, sem saber que tá mal
Quando a gente sai de um, é como se emergisse do fundo do mar depois de quase morrer afogada. É como voltar a respirar depois de ter esquecido que se precisa de ar. O problema é que depois de um tempo a gente passa a ganhar resistência. O azulado da pele sem oxigênio suficiente me caía bem, a água era morna, quem não gosta do fundo do mar?
Mas tem hora que a natureza dá o seu tempo. Meu corpo começou a ceder, eu não era mais tão doce, a água salgada do mar me invadiu, eu me perdi. Na explosão de dor, eu não sabia mais o que era meu e o que era dele, se a dor era minha ou era dele, eu só sei que eu doía, e doía muito.
Eu tentei me adaptar ao mar. Por anos achei que criaria guelras, aprenderia a mergulhar melhor e me sentiria bem no fundo do mar. Mas eu tenho medo do mar, sempre tive. Me forcei a entrar no fundo do mar mesmo sabendo que não me sentia confortável. Achei que assim aprenderia, mas não é assim que as coisas funcionam. E não dá pra subir pra superfície de mãos dadas se o outro quer ficar no fundo e não consegue ver a superfície, é impossível, eu afundei também.
Ficar no fundo do mar pra ver os peixes é bom, mas quando o seu corpo precisa de ar você precisa subir. Não importa o quão aconchegante e gostoso seja, se você não subir você morre mesmo que o mar esteja calmo e convidativo. Peixes são peixes, pessoas não são peixes, por mais que insistam que sejam.
Depois que a gente sobe e tem aquele sol na cara, o ar preenche dentro dos pulmões mas parece que até a sua pele inspira. A sensação de liberdade sem saber que se estava presa tem gosto estranho. É boa, mas é confusa e é inevitável não se sentir decepcionada consigo mesma por ter passado por tudo isso. Logo eu que sei do meu medo de mar, do meu nado e até quanto tempo aguento embaixo dágua, fechei os olhos, prendi o nariz e pulei. No começo achei que era um desses mergulhos de verão, mas era pra navegar.
Eu nunca aprendi a nadar. Fiz natação algumas vezes, mas nunca consegui avançar muito. Sempre tem um momento que eu fico ansiosa por prender a respiração por muito tempo. Desde sempre soube que mergulho não era pra mim, apesar de achar lindo. Mas então porque entrei no barco, prendi a respiração e pulei no mar?
A princípio é tudo bem gostoso. Apesar do receio, o início de uma experiência é sempre gostoso, mesmo que você conheça bem o seu relacionamento com isso. Depois de tanto tempo no mar, o sal começa a machucar a pele. As cicatrizes começam a aparecer e apesar de querer negar que seja o mar, elas estão lá e todo mundo pode ver. Eu quis negar, mas por mais que a gente queira, a realidade não muda.
Eu sei que daqui um tempo eu vou olhar pra isso e sentir mais compaixão comigo mesma, mas eu não quero escrever sobre isso. Eu quero descrever o que é se perder em território conhecido e mesmo sabendo o caminho de volta continuar indo. Eu sei que o tempo vai trazer as reflexões e aprendizados dessa viagem, mas eu não quero saber deles agora. Eu quero escrever sobre afogamento e auto-resgate. Sobre ser o seu próprio salva-vidas sem se quer saber nadar. Quero falar de raiva dilacerante e uma vontade de gritar pra dentro de si. Hoje eu quero ir pra casa, mas não sei onde é minha casa, nem sei se já tive uma. Só sei que chega de mar, preciso de ar e terra firme.